Na semana passada, entre dia 19 e 26 de outubro, tive a fantástica oportunidade de integrar o Curso Internacional de Especialização em Saúde Pública (CIESP), como docente na área de Comunicação em Saúde, integrado no Projeto IANDA Guiné Saúde. Se em 2018, quando terminei o Curso de Especialização em Saúde Pública no Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), me tivessem dito que 4 anos depois estaria a dar formação na Guiné-Bissau, não acreditaria. O receio inicial que partilhei com a Prof.ª Ana Abecassis rapidamente se transformou num incansável desejo de dar o meu melhor a esta comunidade.
Foi a minha primeira viagem à Guiné-Bissau, a África e também o primeiro curso de vários dias que realizo no estrangeiro. Algumas das razões que fazem desta uma das viagens que marca a minha carreira como médico de saúde pública e como especialista em comunicação em saúde.
O Projeto IANDA Guiné Saúde – Reforço do Sistema de Saúde da Guiné-Bissau é um projeto financiado pela União Europeia, gerido e cofinanciado pelo Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, I.P., e cofinanciado pela Fundação Calouste Gulbenkian que se assume como entidade implementadora, a par do IHMT e da Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (ESEnfC).
Desconhecia até à data o trabalho desenvolvido pelo Camões – Instituto da Cooperação e da Língua, mas fiquei supreendido pelo impacto que tem nas comunidades além-fronteiras. Aos colegas que encontrei em Bissau, reconheço um inesgotável espírito de missão, de sacrifício e hospitalidade - fizeram-me sentir como se estivesse em casa, desde o primeiro dia.
Um programa formativo para comunicar saúde na Guiné-Bissau
Durante 5 dias tive a oportunidade de dar formação sobre comunicação em saúde a 25 médicos, desde clínicos a diretores-gerais de diferentes regiões da Guiné-Bissau. Se em Portugal tenho insistido na importância da formação nesta área para todos os profissionais de saúde, este apelo é redobrado no contexto guineense.
Procurei reunir em cerca de 20 horas todas as aprendizagens que tive ao longo da minha carreira, desde os conceitos básicos de literacia em saúde, a importância da perceção de risco para comunicar, os modelos de mudança comportamental e a sua ligação ao marketing social, o combate à desinformação em saúde, a comunicação de risco e em contexto de crise, assim como a comunicação estratégica em instituições de saúde. Não só foi desafiante resumir tanta informação em apenas 20 horas, como também adequar os conteúdos a um público com necessidades muito específicas.
Sem comunicação, não há saúde, não há educação, não há desenvolvimento. Sem comunicação não há vida.
Durante este ano tenho vindo a investir nas minhas competências pedagógicas, procurando conhecer a forma como aprendemos e algumas estratégias de ensino inovadoras. Foi fantástico ver, no final do curso, que esse investimento teve um bom retorno para todos os formandos - o comentário "alguém a falar sobre comunicação, que sabe comunicar" deixou-me deveras realizado, com a certeza que estou no caminho certo. Mais do que falar por 20 horas, foi fundamental segmentar os conteúdos, dar oportunidade para participarem, partilharem experiências pessoais e desafiar os colegas com pequenos testes diários. E se por um lado preparei todos os conteúdos em formato de apresentação, durante metade do tempo não foi possível utilizá-lo, mas acredito que as condições até potenciaram uma melhor experiência de aprendizagem.
Quais as diferenças entre comunicar em Portugal e na Guiné-Bissau?
Se achamos que em Portugal enfrentamos desafios para comunicar saúde, então na Guiné-Bissau essa seria, à partida, uma missão impossível. A escassez de recursos disponíveis para comunicar e a baixa literacia da maioria da população guineense obriga a uma análise mais atenta dos vários materiais e canais de comunicação mais adequados, de acordo com os públicos-alvos a que pretendemos chegar.
Ainda antes de partir para a Guiné-Bissau, consegui encontrar bastante informação sobre o contexto guineense em dois relatórios bastante completos e recentes. O Grande Inquérito sobre uso e consumo de informação pela população da Guiné-Bissau (Universidade Católica Portuguesa - Centro de Estudos e Sondagens de Opinião) e o Inquérito aos Indicadores Múltiplos (Ministério da Economia e Finanças/UNICEF/Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento/Fundo das Nações Unidas para a População) permitem conhecer um pouco melhor como se comunica na Guiné-Bissau:
Apesar do português ser a língua oficial, apenas cerca de 15% da população a fala. A maioria dos guineenses compreende e fala crioulo, mas existem muitos mais idiomas de regiões e etnias específicas.
A rádio é o meio de comunicação social com maior alcance, chegando a cerca de 60% da população. A maioria ouve rádio durante a manhã (72%), sobretudo em crioulo (96%).
Apesar de existir apenas 1 rádio pública e 7 privadas com alcance nacional, existem cerca de 35 rádios comunitárias disponíveis em diferentes regiões.
A televisão é usada por cerca de 50% das pessoas em Bissau, mas o seu uso cai para menos de 20% nas restantes regiões. A maioria das pessoas vê televisão depois de jantar (73%), sobretudo em português (80%).
Cerca de 14% dos guineenses não ouve rádio nem vê televisão. Cerca de 77% nunca lê jornais ou revistas.
A maioria dos guineenses tem acesso a telemóvel (94%), mas estes não são necessariamente smartphones.
Cerca de 41% dos guineenses utiliza redes sociais, sobretudo abaixo dos 35 anos de idade.
Existem grandes desigualdades no acesso aos meios de comunicação: pessoas mais pobres, de meios rurais e do sexo feminino utilizam menos a rádio, telemóvel e computador.
A maior parte das pesquisas efetuadas em motores de busca online estão relacionadas com apostas (11 referêcias nos 20 primeiros resultados).
Menos de 20% das pessoas tem competências básicas de leitura, sendo as competências básicas numéricas ligeiramente superiores.
Como é possível confirmar, este é um contexto muito diferente daquele que encontramos em Portugal, onde a comunicação presencial, seja através de agentes de saúde comunitária ou em fóruns de discussão (djumbai, entre outros termos utilizados), é uma das formas mais eficazes de chegar às comunidades mais isoladas.
Desinformação em saúde, um problema global
O jogo Get Bad News é sempre um sucesso garantido em qualquer formação sobre desinformação. Tive conhecimento deste jogo durante o curso de gestão de infodemia da Organização Mundial de Saúde, que fiz em 2020. Ao longo de várias perguntas, permite compreender quais as estratégias de desinformação mais utilizadas, desde a construção de teorias de conspiração até desacreditar aqueles que transmitem as mensagens.
A desinformação na Guiné-Bissau tem algumas características que dificultam as intervenções nesta área. Existem crenças religiosas e tradicionais muito enraizadas, sendo muito valorizada a medicina tradicional e os curandeiros de cada comunidade. Infelizmente, tal acaba por adiar o recurso aos serviços de saúde em situações mais graves, dificultando um diagnóstico e tratamento precoces.
Por outro lado, segundo um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, os guineenses tinham receio em tomar a vacina contra a COVID-19 por várias razões:
Recusa em fazer vacina contra a sua vontade.
Preocupação com outras doenças “não-COVID”, como o VIH e malária.
Feedback de familiares e amigos no estrangeiro.
Informação transmitida unilateralmente, sem forma de tirar dúvidas.
Rumores e desinformação sobre o tema.
Recomendo ainda a leitura de um artigo recentemente publicado, sobre a vacinação contra a COVID-19 na Guiné-Bissau.
Procurei reforçar a importância de recolher dados sobre os conhecimentos, atitudes e práticas da população (Knowledge, Attitudes and Practices - KAP), como forma de identificar as principais dúvidas da população e possibilitar o preenchimento destes "vazios de informação". Também na Guiné-Bissau os profissionais de saúde gozam de um estatuto de confiança por parte da população, pelo que serão os embaixadores ideais para combater a desinformação na área da saúde.
Um combate que, recorde-se, deve ser feito através da desmitificação de mitos (com recurso à chamada "sanduíche de verdade", começando por destacar a informação verdadeira, explicando depois o mito e a razão de ser falso, e terminando com a informação corrigida), mas pode ser evitado através da inoculação prévia de informações verídicas.
Para além da abordagem da desinformação em saúde nas aulas do CIESP, o Adido para a Cooperação, António Nunes, proporcionou um momento único de partilha com a comunidade guineense, no Centro Cultural Português (não esquecendo o apoio imprescindível da Paula Matos da Costa). Uma das sessões mais interessantes que já tive desde que entrei no mundo da comunicação em saúde, que acredito ter deixado algumas sementes que germinarão em pouco tempo.
Uma imagem vale mais do que mil palavras
Confesso que a componente de design gráfico e visualização de dados é aquela que me dá mais gozo trabalhar em contexto de formação. Mostrar a profissionais de saúde que podem ser criativos na altura de comunicar com os doentes e comunidades. E todos o conseguem, sem exceção!
Numa pequena adaptação que fiz do conhecido jogo para adivinhar palavras a partir de desenhos, os médicos partilharam entre si autênticas obras de arte para comunicar conceitos de saúde pública (que não vou revelar para não "spoilar" futuras formações). E alguns até já o faziam mesmo antes desta formação, o que me surpreendeu bastante.
A verdade é que, face a uma população com baixa literacia e diferentes idiomas, a utilização de ícones é um elemento-chave para comunicar na Guiné-Bissau. Táticas que já haviam sido utilizadas aquando da epidemia de Ébola em vários países africanos. E como podem ver pelas imagens deste artigo, também os posters utilizados durante a pandemia de COVID-19 nas comunidades são simples, incluem ícones fáceis de identificar e transmitem mensagens claras.
E se podemos pensar que este é um capricho, num país que tem tantas necessidades, eu acredito que é um passo na direção certa. Os profissionais de saúde e de comunicação estão no terreno e já fazem um trabalho fantástico, com os poucos recursos que têm. Mas mal posso esperar por ver os próximos projetos destes colegas, com algumas das ferramentas que procurei transmitir!
Para o futuro, ficam vários contactos já estabelecidos com profissionais de saúde e investigadores e a promessa de organizar formações à distância, durante o ano de 2023. Quanto ao regresso à Guiné-Bissau, não dúvido que acontecerá, resta saber quando.
Em Portugal e em todo o mundo (para já à distância de uma videoconferência), continuo a missão de levar os profissionais de saúde e investigadores a atingirem o seu potencial através da comunicação em saúde!
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